Trabalho a ser apresentado à P
Assis, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis / seleção Domícia França Filho – 12º Ed – São Paulo: Global, 1997
Assis, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis / seleção Domícia França Filho – 12º Ed – São Paulo: Global, 1997
Lispector,
Clarice. A hora da estrela – Rio de Janeiro: Racco, 1998.
Neste ensaio
pretendemos abordar as relações intertextuais entre a obra A hora da Estrela da
autora Clarice Lispector e o conto A cartomante de Machado de Assis, tomando
como recorte da obra de Clarice, o episódio da visita de Macabéa a cartomante,
analisaremos a partir do eixo temático do amor como essas produções artísticas
dialogam e desdobram outras temáticas, questões sociais, através das histórias
movidas pelo amor.
A nordestina Macabéa, a
protagonista de A Hora da Estrela, é uma mulher miserável, que mal tem
consciência de existir. Logo após perder seu único elo com o mundo, uma velha
tia, ela viaja para o Rio, onde aluga um quarto, se emprega como datilógrafa e
passa o tempo ouvindo a Radio Relógio (que dava “hora certa e cultura”, e
nenhuma música). Apaixona-se, então, por Olímpico de Jesus, um metalúrgico
nordestino que mais tarde a trai com uma colega de trabalho.
Desesperada, Macabéa consulta
uma cartomante que lhe prevê um futuro luminoso, bem diferente do que a espera.
Vilela, Camilo e Rita,
os três protagonistas de A Cartomante têm suas origens da seguinte forma: os
dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu carreira de magistrado,
Camilo entrou no funcionalismo público com a ajuda da sua mãe e a contragosto
do pai, que o queria médico. No início de 1869, Vilela retorna da província
onde casara com uma “dama formosa e tonta” – Rita. Tendo abandonado a
magistratura veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa na região
de Botafogo e foi recepcioná-los.
Com o reencontro
uniram-se os três e o convívio trouxe intimidade. É a partir daí que se inicia
o triângulo amoroso, a traição, as suspeitas, os medos etc.
Enquanto Macabéa buscava
consolo através da cartomante, os personagens da Machado, Rita e Camilo
buscavam saber se seriam felizes apesar de viverem um relacionamento ilícito,
pois eram amantes, já que Rita era esposa de Vilela. É nesse ponto que as obras
convergem, pois ambos os personagens de Clarice e Machado, recorrem ao
sobrenatural em nome do amor, é interessante perceber que o equívoco na
previsão das cartomantes se repete nas duas produções artísticas e a
culminância é a morte dos personagens.
Podemos identificar que
apesar dessas produções serem marcadas pelo enfoque no amor é possível perceber
a questão do desamparo na Hora da Estrela, pois Macabéa é o símbolo máximo do
abandono, do descaso, (representação das massas populacionais, classe não
privilegiada, operária etc), é no episódio da sua morte, em que após ser
atropelada por uma Mercedes, Macabéa é rodeada por transeuntes curiosos, essa é
hora da estrela, nesse momento Macabéa é percebida pelo mundo, porém ela não
está mais ali, apenas o seu corpo inerte.
Percebemos então a
invisibilidade da personagem de Clarice diante do mundo que a cerca, sobre essa
invisibilidade, Santiago (2004) afirma ser o cosmopolitismo do pobre que passa
pela vida, engrossa as fileiras de uma sociedade que não lhe percebe, sobre
isso fazemos menção a outra característica presente nas obras de Clarice, que é
a errância/migração, o sentir-se estranho em qualquer lugar, o sentimento de
não pertencimento, a condição existencial, o estar fora estando dentro, o
sobreviver em lugar de viver, essas marcas (características) são perceptíveis
no imaginário da obra, no entanto nem sempre aparece de forma concreta,
explícita.
Em relação à obra de
Machado, podemos perceber além do eixo temático do amor que une as duas
produções artísticas através da intertextualidade, idenficamos a questão moral
/religiosa no episódio em que Camilo ao saber que Rita consultava uma
cartomante, a censura -... “Tu crês deveras nessas coisas? Perguntou-lhe”, “
... Camilo não acreditava eu nada..”, sobre a questão moral é perceptível a
figura da mulher como sedutora, como instrumento pelo qual o homem é sempre
tentado a transgredir as leis morais e religiosas - ... “Pouco depois morreu a
mãe de Camilo, ...Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita
tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor”... ...“Como daí
chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as
horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral”... e ... “Camilo quis
sinceramente fugir, mas não pôde. Rita como uma serpente foi se acercando dele,
envolvendo-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo e pingou-lhe o veneno
na boca. Ele ficou atordoado e subjugado... ...adeus escrúpulos...”, assim
percebemos alusão clara a queda do homem pela tentação da serpente e da mulher
no paraíso bíblico. Essa questão religiosa também está presente na obra de
Clarice no episodio em que durante a consulta de Macabéa, madame Carlota fala
de suas desventuras passadas e de como “Jesus” a ajudara, é interessante
perceber que madame Carlota molda o seu discurso ao discurso
cristão/protestante que afirma que só “Jesus” pode salvar esse episódio
demonstra um paradoxo entre os discursos presentes no pensamento religioso
ocidental que tornam oposto prostituição/castidade, pecado/santidade, já que
madame Carlota afirma ser ex prostituta, ex cafetina, e ainda pratica bruxaria,
no entanto afirma que Jesus está ao lado dela, contradizendo o que a Bíblia
afirma do condenar tais práticas.
Outra questão implícita
na temática do amor presente nessas obras é a idéia da morte como
redenção/libertação e vingança/restituição (da honra) já que Vilela, o marido
traído mata os amantes, e Macabéa morre libertando-se da sua vida de
sofrimentos. Percebemos a presença do mistério e do futuro imprevisível (até
mesmo para a cartomante), na obra de Machado, isso é sinalizado através da
intertextualidade com as obras de Shakespeare (Rita é descrita como interprete
de Hamlet em vulgar (números, ou ainda, o simulacro), no entanto afirmamos que
a intertextualidade perpassa ainda Macbeth, pois assim como as três bruxas
aparecem ao general Macbeth anunciando “Coisas de som tão belo”, a Cartomante
consultada por Rita e Camilo faz previsões tais que outra sorte não se poderia
admitir.
Vale ressaltar ainda a
descrição das características físicas das cartomantes de nas duas obras que
muito se aproxima, parecendo se tratar do mesmo personagem, até o ato de comer
durante a consulta está presente nas duas obras, enquanto a Cartomante de Machado
ingeria passas, obra de Clarice, Madame Carlota comia bombons, em Machado,
“mãos com longos dedos finos, de unhas descuradas e duas fileiras de dentes que
desmentiam as unhas”, em Clarice, uma mulher enxundiosa, com boca rechonchuda
pintada com vermelho vivo e nas faces oleosas, duas rodelas de ruge brilhoso.
Tais características
analisadas nesse trabalho nos permitem demonstrar a intertextualidade através
da literatura comparada que busca no estudo dessas obras evidenciar o que
aproxima e o que distancia essas duas produções artísticas.
Referências
SAID,
Edward Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
SANTIAGO,
Silviano. Uma literatura anfíbia. In:
O cosmopolitismo do pobre: crítica
literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2004. P. 64-73
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