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A língua está em mim, me perpassa, faz parte da minha formação como ser social inserido num grupo. Compõe ainda a minha própria formação acadêmica já que resolvi após o primeiro curso superior (Administração), cursar Letras. Essa língua me representa em todos meus conflitos, pois suas características são iguais as minhas, um ser multifacetado, de exterior sóbrio e estático, mas no íntimo um turbilhão em movimento. Assim como um rio congelado que apresenta a sua superfície estática, mas o seu interior está sempre em movimento, num curso perene. Capacidade de adaptação e compreensão com singularidade e regionalidades tolerantes como próprios à língua. Escrever é para mim, como respirar, sinto essa necessidade e é através da escrita como afirmou Aristóteles que transitamos desde o terror até a piedade de nós mesmos e do outro. Esse ofício da escrita nos eleva, nos projeta, nos ressignifica quando tocamos o outro com as nossas palavras, seja no universo ficcional, biográfico ou autobiográfico. Escrever é uma necessidade, escrever é transpirar no papel as nossas leituras.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

INTERTEXTUALIDADE EM CLARICE E MACHADO










Trabalho a ser apresentado à P
Assis, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis / seleção Domícia França Filho – 12º Ed – São Paulo: Global, 1997
Lispector, Clarice. A hora da estrela – Rio de Janeiro: Racco, 1998.

Neste ensaio pretendemos abordar as relações intertextuais entre a obra A hora da Estrela da autora Clarice Lispector e o conto A cartomante de Machado de Assis, tomando como recorte da obra de Clarice, o episódio da visita de Macabéa a cartomante, analisaremos a partir do eixo temático do amor como essas produções artísticas dialogam e desdobram outras temáticas, questões sociais, através das histórias movidas pelo amor.
A nordestina Macabéa, a protagonista de A Hora da Estrela, é uma mulher miserável, que mal tem consciência de existir. Logo após perder seu único elo com o mundo, uma velha tia, ela viaja para o Rio, onde aluga um quarto, se emprega como datilógrafa e passa o tempo ouvindo a Radio Relógio (que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música). Apaixona-se, então, por Olímpico de Jesus, um metalúrgico nordestino que mais tarde a trai com uma colega de trabalho.
Desesperada, Macabéa consulta uma cartomante que lhe prevê um futuro luminoso, bem diferente do que a espera.
Vilela, Camilo e Rita, os três protagonistas de A Cartomante têm suas origens da seguinte forma: os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu carreira de magistrado, Camilo entrou no funcionalismo público com a ajuda da sua mãe e a contragosto do pai, que o queria médico. No início de 1869, Vilela retorna da província onde casara com uma “dama formosa e tonta” – Rita. Tendo abandonado a magistratura veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa na região de Botafogo e foi recepcioná-los.
Com o reencontro uniram-se os três e o convívio trouxe intimidade. É a partir daí que se inicia o triângulo amoroso, a traição, as suspeitas, os medos etc.
Enquanto Macabéa buscava consolo através da cartomante, os personagens da Machado, Rita e Camilo buscavam saber se seriam felizes apesar de viverem um relacionamento ilícito, pois eram amantes, já que Rita era esposa de Vilela. É nesse ponto que as obras convergem, pois ambos os personagens de Clarice e Machado, recorrem ao sobrenatural em nome do amor, é interessante perceber que o equívoco na previsão das cartomantes se repete nas duas produções artísticas e a culminância é a morte dos personagens.
Podemos identificar que apesar dessas produções serem marcadas pelo enfoque no amor é possível perceber a questão do desamparo na Hora da Estrela, pois Macabéa é o símbolo máximo do abandono, do descaso, (representação das massas populacionais, classe não privilegiada, operária etc), é no episódio da sua morte, em que após ser atropelada por uma Mercedes, Macabéa é rodeada por transeuntes curiosos, essa é hora da estrela, nesse momento Macabéa é percebida pelo mundo, porém ela não está mais ali, apenas o seu corpo inerte.
Percebemos então a invisibilidade da personagem de Clarice diante do mundo que a cerca, sobre essa invisibilidade, Santiago (2004) afirma ser o cosmopolitismo do pobre que passa pela vida, engrossa as fileiras de uma sociedade que não lhe percebe, sobre isso fazemos menção a outra característica presente nas obras de Clarice, que é a errância/migração, o sentir-se estranho em qualquer lugar, o sentimento de não pertencimento, a condição existencial, o estar fora estando dentro, o sobreviver em lugar de viver, essas marcas (características) são perceptíveis no imaginário da obra, no entanto nem sempre aparece de forma concreta, explícita.
Em relação à obra de Machado, podemos perceber além do eixo temático do amor que une as duas produções artísticas através da intertextualidade, idenficamos a questão moral /religiosa no episódio em que Camilo ao saber que Rita consultava uma cartomante, a censura -... “Tu crês deveras nessas coisas? Perguntou-lhe”, “ ... Camilo não acreditava eu nada..”, sobre a questão moral é perceptível a figura da mulher como sedutora, como instrumento pelo qual o homem é sempre tentado a transgredir as leis morais e religiosas - ... “Pouco depois morreu a mãe de Camilo, ...Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor”... ...“Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral”... e ... “Camilo quis sinceramente fugir, mas não pôde. Rita como uma serpente foi se acercando dele, envolvendo-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado... ...adeus escrúpulos...”, assim percebemos alusão clara a queda do homem pela tentação da serpente e da mulher no paraíso bíblico. Essa questão religiosa também está presente na obra de Clarice no episodio em que durante a consulta de Macabéa, madame Carlota fala de suas desventuras passadas e de como “Jesus” a ajudara, é interessante perceber que madame Carlota molda o seu discurso ao discurso cristão/protestante que afirma que só “Jesus” pode salvar esse episódio demonstra um paradoxo entre os discursos presentes no pensamento religioso ocidental que tornam oposto prostituição/castidade, pecado/santidade, já que madame Carlota afirma ser ex prostituta, ex cafetina, e ainda pratica bruxaria, no entanto afirma que Jesus está ao lado dela, contradizendo o que a Bíblia afirma do condenar tais práticas.
Outra questão implícita na temática do amor presente nessas obras é a idéia da morte como redenção/libertação e vingança/restituição (da honra) já que Vilela, o marido traído mata os amantes, e Macabéa morre libertando-se da sua vida de sofrimentos. Percebemos a presença do mistério e do futuro imprevisível (até mesmo para a cartomante), na obra de Machado, isso é sinalizado através da intertextualidade com as obras de Shakespeare (Rita é descrita como interprete de Hamlet em vulgar (números, ou ainda, o simulacro), no entanto afirmamos que a intertextualidade perpassa ainda Macbeth, pois assim como as três bruxas aparecem ao general Macbeth anunciando “Coisas de som tão belo”, a Cartomante consultada por Rita e Camilo faz previsões tais que outra sorte não se poderia admitir.
Vale ressaltar ainda a descrição das características físicas das cartomantes de nas duas obras que muito se aproxima, parecendo se tratar do mesmo personagem, até o ato de comer durante a consulta está presente nas duas obras, enquanto a Cartomante de Machado ingeria passas, obra de Clarice, Madame Carlota comia bombons, em Machado, “mãos com longos dedos finos, de unhas descuradas e duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas”, em Clarice, uma mulher enxundiosa, com boca rechonchuda pintada com vermelho vivo e nas faces oleosas, duas rodelas de ruge brilhoso.
Tais características analisadas nesse trabalho nos permitem demonstrar a intertextualidade através da literatura comparada que busca no estudo dessas obras evidenciar o que aproxima e o que distancia essas duas produções artísticas.




Referências

SAID, Edward Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura anfíbia. In:
O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2004. P. 64-73




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