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Salvador, Bahia, Brazil
A língua está em mim, me perpassa, faz parte da minha formação como ser social inserido num grupo. Compõe ainda a minha própria formação acadêmica já que resolvi após o primeiro curso superior (Administração), cursar Letras. Essa língua me representa em todos meus conflitos, pois suas características são iguais as minhas, um ser multifacetado, de exterior sóbrio e estático, mas no íntimo um turbilhão em movimento. Assim como um rio congelado que apresenta a sua superfície estática, mas o seu interior está sempre em movimento, num curso perene. Capacidade de adaptação e compreensão com singularidade e regionalidades tolerantes como próprios à língua. Escrever é para mim, como respirar, sinto essa necessidade e é através da escrita como afirmou Aristóteles que transitamos desde o terror até a piedade de nós mesmos e do outro. Esse ofício da escrita nos eleva, nos projeta, nos ressignifica quando tocamos o outro com as nossas palavras, seja no universo ficcional, biográfico ou autobiográfico. Escrever é uma necessidade, escrever é transpirar no papel as nossas leituras.

sábado, 3 de outubro de 2015

DO ORIENTALISMO



                  A crise da representação na literatura brasileira contemporânea, está relacionada à figura do narrador ou da tríade autor-narrador-personagem.
                  Como afirma Regina Dalcastagnè (2008) o ser humano tem a necessidade de ser representado, o problema dessa representação é a questão da voz. Falar para quem? E em nome de quem? Quando se fala no "outro" não se fala dele como ele realmente é, falamos de um ponto de vista, falamos da forma que queremos vê-lo.
                   A partir do momento que o outro é visto dessa forma legitima-se a distância social que existe entre o narrador e o personagem, (o outro). Esse outro na maioria das vezes é visto de forma preconceituosa, pois as características que o narrador encontra nele, (o outro) são contrárias às suas, (narrador) para manter uma distância entre eles.
                    Esse outro é  a massa consumista, pobre, que ainda não possui uma identidade e faz parte de um cenário urbano. Em relato de certo Oriente, Hatoum, (debruça-se sobre um tema bastante comum:  a família e seus dramas, o texto de Hatoum mostra que o refúgio da memória é a interioridade do indivíduo, reduzido e isolado na sua própria história, incomunicável com outro mundo que não  seja o dele.) As separações que a aristocracia que detinha o poder operou a fim de que o "poder" não fosse democratizado, como trata Cancline no seu texto: Os desajustes entre o modernismo e a modernização são úteis às classes dominantes para preservar sua hegemonia, e às vezes não ter que se preocupar em justificá-las, para ser simplesmente classes dominantes. Na cultura escrita, o conseguiram limitando a escolarização e o consumo de livros e revistas. Na cultura visual, através de três operações que fizeram possível às elites reestabelecer repetidamente, na frente de cada câmbio modernizador, sua concepção aristrocratica; espiritualizar a produção cultural sob o aspecto de “criação” artística, com a consequente divisão entre arte e artesanato;  Congelar a circulação dos bens simbólicos em coleções, concentrando-os em museus, palácios e outros centros exclusivos; propor como única forma legítima de consumo de estes bens, a modalidade também espiritualizada, hierática, de recepção que consiste em contemplar. (CANCLINI, 1997, p. 67.
                    O texto de Hatoum se estrutura através de uma estratégia de composição que transita e oscila entre a narração - em que a figura do narrador é extremamente importante e o relato é feito principalmente com base nas tradições orais, como uma tentativa de rememoração das experiências coletivas do passado e o romance que apareceria como um gênero literário decorrente das transformações da sociedade capitalista que destrói cada vez essas tradições.
                    Relato de um certo Oriente é formado por um conjunto de vozes, organizado por uma narradora que retorna a Manaus depois de muitos anos ausente. Essa mulher sem nome procura por Émile, a matriarca de origem Árabe que criou a ela e a seu irmão. O texto é uma extensa carta destinada ao irmão que continua distante de Manaus. Após sua estadia numa clínica, a narradora decide retornar para sua terra natal, e termina por desencadear um despertar múltiplo de memórias, que se estenderam de Manaus até o Líbano.
                    Sobre essa tentativa de narrar sua própria história e as características desse fazer narrativo, Hoisel,(2006) irá afirmar que a concepção gerada pela crítica positivista do Século XIX, passou a valorizar a biografia do ponto de vista que o texto era produto do autor, ou seja, o autor possuía autoridade sobre o seu próprio texto. Hoisel afirma ainda, que o conceito de biografia nem sempre existiu, muitos autores foram criando, de forma que era uma parte da historiografia como um gênero literário, (Como a narradora de Hatoum, se apóia na sua história e nos relatos de outros a respeito de si mesmo para compor a sua autobiografia endereçada a seu irmão.)
                     É a partir do renascimento que surgem as condições históricas efetivas para que a biografia e a autobiografia possam se afirmar como forma discursiva, que se constituirá pela presença do sujeito a partir de um duplo e simultâneo foco: Como o sujeito reage ao mundo e como o mundo reage ao sujeito. Hoisel afirma que na Idade Média faltava essa inter-relação, uma vez que, nesse período, o sujeito ainda não é pensado a partir de suas dimensões psicológicas.
                      Desse modo, Hoisel elenca Rousseau como responsável pelo traços que constituem a autobiografia moderna, o que Costa Lima vai considerar como paradigma da autobiografia moderna, destacando cinco características principais desse gênero: definição da autobiografia como documento de uma vida, narrado por um narrador competente, prazer que o sujeito encontra em se narrar, revelação da sua própria intimidade e a paixão indagadora,(podemos perceber todas essas características no testo de Hatoum, apesar desse texto ser composto de um mosaico de citações- narrativas).
                       Diante disso Hoisel defende que apesar determinados aspectos da biografia já existirem dentro de outros textos, somente Rousseau irá determinar definições mais claras, como a questão do pacto do sujeito com  linguagem. Esse pacto consiste em registrar com veracidade a sua própria vida,(O que pretende a narradora de Hatoum, ao organizar um conjunto de vozes na sua narrativa), desse modo a biografia teria características como: autenticidade, veracidade, exemplariedade, legitimidade. Mais tarde Rousseau irá constatar que na Modernidade, não é possível dizer tudo através da obra autobiográfica, devido a dificuldade que está relacionada à linguagem.
                        Hoisel ressalta que os estudos psicanalíticos  abalam a concepção de literatura,(biografia/autobiografia) no Século XIX, por questionar o poder e o querer autoral, criticando assim, o nascimento do texto, de forma que o autor que o produz trás consigo todas as interpretações "corretas".Hoisel conclui sobre a questão biográfica, que já temos a realidade tal qual ela é; uma produção da linguagem. E interpretar essa realidade só é possível através de um olhar que codifica ou decodifica através da linguagem, levando em consideração o seu contexto histórico, cultural,(conhecimento e experiências passadas), segundo a sua percepção individual.
                        Logo a biografia não é apenas a reprodução do que foi vivido factualmente. A obra é uma vivência imaginária que percorre várias territorialidades onde o autor esteve físico e emocionalmente envolvido, e que resultou em experiências múltiplas. Vale ressaltar ainda as relações do texto de Hatoum e Said,(2003) que objetiva demonstrar como se constitui toda uma área de conhecimento, o Orientalismo, dedicada a reforçar procedimentos de domesticação e naturalização do mundo do outro, o Oriente.
                         Em seu texto Said não percorre essas questões que ainda não apresentavam, naquela época, essa configuração alarmante. Mas as relações se estabelecem naturalmente, e após uma leitura atenta do texto de Said a conjuntura contemporânea se apresenta paradoxalmente, mais compreensível e incontornável, pois são séculos de continuado desrespeito e dominação: O imperialismo orientalista pressupõe: " uma raça submetida, dominados por uma raça que os conhece e sabe o que é bom para eles, melhor do que eles poderiam jamais saber por si mesmos, (a questão da representação do individuo pelo intelectual e sua função social- falar pelo outro). "A realidade orientalista é tão desumana como persistente".
                          Da mesma maneira que Hatoum em seu relato, demonstra a  mesma questão por um viés mais doméstico.

HOISEL Evelina- Grande Sertão Veredas- Uma escrita biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa Do Estado da Bahia. Academia De Letras da Bahia, 2006.
HATOUM Milton. Relato de um certo Oriente: Companhia  das Letras 1989.

SAID. Edward W.  Orientalismo:
O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Regina Dalcastagnè (Org.). Ver e imaginar o outro. São Paulo: Ed. Horizonte, 2008.
CANCLINI Nestor G. Culturas Híbridas, São Paulo, Ed. USP, 1997.