Análise
comparativa entre os escritores Samuel Rawet e Moacyr Scliar convergem nas obras autoficcionais em que as
fronteiras racionais entre vide e obra, se mesclam, compondo um híbrido de ser real e ser
imaginado.
Podemos perceber na escrita destes autores a figura do judaísmo e dos
judeus que as obras evocam. Essa imagem é formada em duas instâncias diferentes: a voz narrativa pode se identificar como judaica, o que acontece muitas vezes
em textos autobiográficos ou autoficcionais, ou essa voz
pode criar personagens e atmosferas judaicas nas quais transpire uma visão
específica sobre o judaísmo.
Nenhuma das escritas estudadas projeta exclusivamente uma imagem
de judeu clichê, seja tal clichê o construído pela comunidade
judaica ou o construído pelo grupo maior. Sendo a voz em primeira ou terceira
pessoa, as obras analisadas revelaram diferentes
graus de tradução, graus esses indefiníveis, pois fora de uma escala precisa. Vemos judeus desscritos que autofagicamente criam, a
partir da representação tradicional do
judaísmo, diversas maneiras de ser judeu. Suas escritas demonstram o poder da palavra na projeção de um imaginário de uma cultura
que está em trânsito. Para uns, esse trânsito
é prejudicial e corrosivo, empobrecedor; para outros, essa ausência de imobilidade é que permite a sobrevivência de um
legado em suas diversas traduções. Assim,
a escrita foi vista como lugar de livre ação, mas também de inscrição da tradição, da memoria, das quais não se escapa; as historias
de um grupo têm uma memória que se perpetua em novas historias.
Em Samuel Rawet, entre o fascínio e o enfado, sua obra projeta a imagem
do escritor experimentalista, avesso as questões do consumo, livre de
amarras e imposições mercadológicas, disposto
a uma escrita que gira em torno de si mesma de maneira alucinante.
Samuel Rawet
cria o escritor Samuel Rawet como um artista abusado, corajoso, disposto a encarar a escrita como uma aventura
muito séria. Seu manejar labiríntico da língua e sua erudição convivem com o
seu sarcasmo, o primeiro dos vários atritos que marcam sua obra.
Com relação ao judaísmo, o autor também se coloca como aquele que se
permite o direito de experimentar, independentemente do preço que venha a pagar
— no seu caso, um anonimato persistente, que
se desfaz atualmente com lentidão, ainda atrelado a grupos de estudos judaicos, e uma perplexidade por
parte desse grupo que ele rejeita e ataca
com ferocidade. Evidentemente, experimentar
talvez seja um eufemismo meu. Contudo, gostaria de marcar que a rejeição
progressiva de Rawet aos judeus, ao meu ver, se coloca também como instrumento da escrita, e passo fundamental
para a quebra de limites que ele se propõe.
O Rawet judeu criado por Rawet é aquele que vive em conflito com a família e a tradição, mas, principalmente,
é aquele que rejeita convenções, sejam elas judaicas ou literárias.
Se podemos argumentar que isso se deve a um suposto auto ódio do
imigrante que deseja ser um Brasileiro, podemos, da mesma
forma, alinhar sua postura como a de um constante desafiador
de regras - papel que, como imagem, cai bem, na linha do artista e
pensador livre; concretizado texto, todavia, nem sempre o resultado é sedutor.
Em consonância com suas oscilações e contradições, o personagem judeu da
ficção de Rawet é, por excelência, o andarilho, o
errante, o judeu diaspórico, o imigrante desenraizado em busca de referentes possíveis.
Um personagem sofrido, mas também capaz de
ser mesquinho - ser judeu, ter sido judeu, significa ser honrado em particular. Em contraste, Moacyr Scliar é um escritor nascido
em berço judaico, o qual fundamenta e
produz material para sua literatura. Ser judeu e ser escritor são dois papéis
em harmonia, interdependentes. Seja
como contador de historias ou contador de si próprio. Scliar projeta uma imagem que é tão pacífica e de
bem consigo que julgamos tê-lo decifrado
rapidamente. Não há conflitos drásticos a serem expressos, e a escrita revela-se fluente, acessível, prazerosa. O autor é talvez
o que de mais próximo existe do contador
de historias Benjaminiano, atuando corno o fio condutor de uma memoria milenar que é respeitada, mas criticada quando necessária.
Para o autor, ser considerado um escritor
judeu não é uma limitação, pelo contrario: o judaísmo é um dos elementos principais
de sua prosa, e a tradução desse para o contexto brasileiro constitui a principal
mola propulsora de sua escrita. Sem se ater a rótulos, Scliar é a interseção
mais hem acabada entre a cultura judaica e a brasileira. O autor representa o cânone
da literatura feita por judeus no Brasil, se assim podemos afirmar, sua tradução acaba por
se tornar, curiosamente, a versão oficial literária do encontro de identidades.
Suas obras tornam o elemento estranho, estrangeiro mais próximo e
desacralizado, acessível e agradável, o que as configuram como a dialética possível
das diferenças e a absorção e ressignificação do choque inicial. Ressignificar
a choque é desenvolver a tolerância, conteúdo subjacente de vários de seus
livros.
Sobre o conto
escolhido, Escalpe, de Moacyr Scliar, não há nada de singular (especial) no
conto até o trecho da perseguição do engenheiro a jovem pela floresta, é como se o trecho inicial quisesse tirar a atenção do leitor para verdadeiro foco,
quanto ao narrador (onisciente?), não temos certeza dessa onisciência pois, se
confunde a fala dos personagens a do narrador, essa narração é feita em 3ª
pessoa.
Trecho emblemático:
“Ele cortou os cabelos enquanto ainda estava deitado sobre ela”: Ele a teria possuído?
“A peruca fora feita, meses se passaram, uma criança nasceu, um menino”. Associação à peruca
ao nascimento da criança dessa mulher que forneceu seu cabelo para confecção
dessa peruca (uma narrativa).
Inicio de
outra narrativa: “Uma tarde de domingo, o engenheiro descansava em casa, lendo
uma revista”. Estava sozinho, a esposa e os filhos passavam a dia fora.
A ambiguidade
se estabelece por que o narrador afirma o nascimento de um menino ao tratar
sabre à peruca e inicia outra narrativa falando da família do engenheiro e ao
tratar das crianças do casal, usa o termo “filhos” e não filhas (se houvesse
nascido outra menina da esposa do engenheiro), confirmando que o leitor é quem
irá determinar a sua leitura a partir daquilo que lhe é pertinente acreditar
(obra aberta).
Em homenagem ao grande escritor
Moacyr Scliar que nos deixou no último ano (2012).